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Os Lusíadas – alguns episódios que desapareceram das aulas
Inserido em 2013-01-23  |  Adicionar Comentário



Vasco da Gama ouve o piloto oriental (1907-1908), de José Malhoa

Em tempos de regresso a textos clássicos que, infelizmente, desapareceram durante décadas dos manuais escolares; em tempos de leituras obrigatórias desses textos; em tempos de desinteresse dos alunos…, lembrei-me hoje de levar para uma aula de 45 minutos do 12.º ano – estamos a estudar Os Lusíadas – alguns episódios, se assim lhes podemos chamar, do Canto V, todos relativos às «perigosas cousas do mar», todos por mim lidos na sala de aula quando frequentava o antigo 5.º ano dos Liceus, todos por mim explicados aos alunos nos primeiros quinze a vinte anos da minha profissão, todos frequentemente relidos sempre com o prazer da descoberta: o «Fogo de Santelmo», a «Tromba Marítima», o «Escorbuto».

Se bem pensei, melhor o fiz, pois dado o caráter realista destes textos, dado o entusiasmo com que os apresentei, os alunos disseram-me no final que não se vão esquecer deles.

A aula fez-me lamentar que estes e outros textos de Os Lusíadas tenham desaparecido dos programas ou não apareçam em todos os manuais. Aqui mesmo na sala dos professores onde estou a escrever se lamentava há tempos uma colega porque o «Velho do Restelo» não constava do manual com que trabalha. Nada nos impede de levar para as aulas textos não constantes nos manuais. O que fiz hoje.


Momentos desta aula para lembrar (sem preocupação de ordem):

• a comparação da tromba marítima com os tornados – que os alunos conhecem da televisão;
• o interesse com que todos assistiram à formação da tromba e ao seu desfazer final;
• o horror perante a descrição – tão humana – dos efeitos do escorbuto;
• a leitura em coro (em voz baixa) daquele verso que que nos ajuda a aceitar a nossa condição de mortais: «Quão fácil é ao corpo a sepultura!»;
• a referência à igual condição na morte de ricos e pobres;
• a apreciação do realismo destes textos;
• a análise do visualismo do narrador («Vi claramente visto…») – os alunos não esquecerão esta expressão, até porque, tendo um prevaricado já no final da aula, lembrei-lhe que tinha visto claramente visto
• a técnica repetitiva da forma verbal «Apodrecia», no final e no início de duas estrofes sucessivas – mostrei-lhes como o Poeta era um artista que sabia como criar efeitos com a repetição e disposição das palavras;
• a comparação entre o formar da tromba e as sanguessugas;
• a valorização por parte do narrador da excelência da experiência como fonte do conhecimento.

Podia continuar.

Ao levar estes textos para a aula cumpri o meu papel de professor: transmitir o que a tradição literária de melhor nos deixou. O facto de determinado texto não constar dos manuais escolares não impede que o ofereçamos aos alunos. Pode até ser imperioso que o façamos – como sei que vou descobrir na próxima aula quando regressarmos ao Poema e eu vir outro interesse…

Ermesinde, Escola Secundária, 22 de Janeiro de 2013
(meia hora depois de terminada a aula…)

António Vilas-Boas



Abaixo, reproduzem-se as estâncias 18 a 22 e 81 a 83, do Canto V, correspondentes aos episódios referidos: «Fogo de Santelmo», «Tomba Marítima» e «Escorbuto»:


Canto V

18
Vi, claramente visto, o lume vivo
Que a marítima gente tem por Santo,
Em tempo de tormenta e vento esquivo,
De tempestade escura e triste pranto.
Não menos foi a todos excessivo
Milagre, e cousa, certo, de alto espanto,
Ver as nuvens, do mar com largo cano,
Sorver as altas águas do Oceano.

19
Eu o vi certamente (e não presumo
Que a vista me enganava):levantar-se
No ar um vaporzinho e sutil fumo,
E, do vento trazido, rodear-se;
De aqui levado um cano ao Pólo sumo
Se via, tão delgado, que enxergar-se
Dos olhos facilmente não podia;
Da matéria das nuvens parecia.

20
Ia-se pouco e pouco acrescentando
E mais que um largo masto se engrossava;
Aqui se estreita, aqui se alarga, quando
Os golpes grandes de água em si chupava;
Estava-se co ondas ondeando;
Em cima dele hua nuvem se espessava,
Fazendo-se maior, mais carregada,
Co cargo grande d´água em si tomada.

21
Qual roxa sanguessuga se veria
Nos beiços da alimária (que, imprudente,
Bebendo a recolheu na fonte fria)
Fartar co sangue alheio a sede ardente;
Chupando, mais e mais se engrossa e cria,
Ali se enche e se alarga grandemente:
Tal a grande coluna, enchendo, aumenta
A si e a nuvem negra que sustenta.

22
Mas, despois que de todo se fartou,
O pé que tem no mar a si recolhe
E pelo céu, chovendo, enfim voou,
Por que co a água a jacente água molhe;
Às ondas torna as ondas que tomou,
Mas o sabor do sal lhe tira e tolhe.
Vejam agora os sábios na escritura
Que segredos são estes de Natura!

(…)

81
E foi que, de doença crua e feia,
A mais que eu nunca vi, desempararam
Muitos a vida, e em terra estranha e alheia
Os ossos pera sempre sepultaram.
Quem haverá que, sem o ver, o creia,
Que tão disformemente ali lhe incharam
As gengivas na boca, que crecia
A carne e juntamente apodrecia?

82
Apodrecia cum fétido e bruto
Cheiro, que o ar vizinho inficionava.
Não tínhamos ali médico astuto,
Sururgião sutil menos se achava;
Mas qualquer, neste ofício pouco instruto,
Pela carne já podre assi cortava
Como se fora morta, e bem convinha,
Pois que morto ficava quem a tinha.

83
Enfim que, nesta incógnita espessura,
Deixámos pera sempre os companheiros
Que, em tal caminho e em tanta desventura,
Foram sempre connosco aventureiros.
Quão fácil é ao corpo a sepultura!
Quaisquer ondas do mar, quaisquer outeiros
Estranhos, assi mesmo como aos nossos,
Receberão de todo o Ilustre os ossos.

(...)


E a si, o que lhe apraz referir sobre este assunto? Entre nesta conversa!

A Equipa.

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Comentários (3)
(Comentário mais recente)
A primeira conclusão a que cheguei quando li o post: os alunos estão completamente motivados (foram literalmente "agarrados") para o estudo d'Os Lusíadas. Acresce dizer que, desde aquela aula, os alunos estão receptivos a qualquer episódio/assunto referente à obra em estudo. Gostava de salientar outro(s) aspecto(s): a autonomia do professor é real, saibamos usá-la; mas será que (...) [Comentário completo]
Também eu lamento que os episódios citados tenham sido retirados do Programa, ou que tenham sido relegados apenas para o 12º ano, tal como acontece com as brilhantes estrofes do episódio do Velho do Restelo. Sempre que leciono, no 9º ano, A partida das Naus tenho de ler aos alunos estas estâncias que são fundamentais para compreender toda a envolvência dos descobrimentos e o pensame (...) [Comentário completo]
A mim apraz-me confessar que adoro sair do formatado exigido por alguns manuais e navegar em páginas soltas. No que diz respeito a estes excertos são fundamentais para que o aluno aprecie a arte magistral da escrita Camoniana. Agradeço que venha lembrar todos os professores deles. Não há aluno que resista ao «Vi, claramente visto!»