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Inserido em 2013-11-14  |  Adicionar Comentário

 

Em 1913, o filósofo Ludwig Wittgenstein deixou para trás as interrupções e distrações de Cambridge para ir viver como um eremita na Noruega. Ninguém o conhecia lá, por isso ele pôde concentrar-se em isolamento no seu trabalho sobre lógica. Funcionou. Ficou alojado durante algum tempo com chefe dos correios em Skjolden, uma vila remota a 200 milhas a norte da cidade de Bergen, e, mais tarde, mudou-se para uma cabana que lhe foi construída com vista para o fiorde. Sozinho, ele lutou com as ideias que se iriam metamorfosear no seu Tractatus Logico-Philosophicus (1921). Qualquer um que tentasse passar algum tempo com ele recebia uma severa reprimenda. “Vá-se embora! Vou demorar duas semanas a voltar ao ponto onde estava antes de você me interromper” foi o que supostamente gritou para um morador local que cometeu o erro de o cumprimentar ao vê-lo parado, pensando sobre o que não poderia ser dito. Para Wittgenstein, o ano que passou na Noruega foi a fonte de muito da sua criatividade filosófica e de algumas das ideias mais intensas que esse filósofo marcadamente intenso alcançou na sua vida. Nesse período, ele fez pouco mais do que pensar, andar, assobiar e de sofrer de depressão.

Wittgenstein abrigado na sua “cabana” norueguesa (na verdade, uma casa de madeira de dois andares com uma varanda) é para muitos o modelo do filósofo em trabalho. O génio solitário à procura do isolamento que espelhasse os rigores de sua própria filosofia austera. Sem distrações. Sem companhia humana. Apenas uma mente semelhante a laser que pensa sobre os primeiros princípios enquanto observa o fiorde ou faz caminhadas na neve. Wittgenstein não foi o primeiro. Boécio, filósofo do século sexto d. C., escreveu a sua Consolação da Filosofia numa cela de prisão romana, com a mente focada na sua iminente execução; Nicolau Maquiavel produziu O Príncipe (1532) no exílio, numa calma fazenda nos arredores de Florença; René Descartes escreveu as Meditações sobre a filosofia primeira (1641) encolhido ao lado de uma fogueira; Jean-Jacques Rousseau foi mais feliz a viver no meio de uma floresta, longe da civilização e por aí fora. A filosofia, nas suas formas mais elevadas, parece intencionalmente solitária e frequentemente prejudicada pela presença de outros.

Ainda assim, esse estereótipo do génio trabalhando em completo isolamento é enganador, mesmo para Wittgenstein, Boécio, Maquiavel, Descartes e Rousseau. A filosofia é uma atividade eminentemente social que floresce com a colisão de pontos de vista e que raramente emerge do monólogo interior não desafiado. Um exame mais de perto do ano de Wittgenstein na floresta norueguesa revela a sua correspondência com os filósofos de Cambridge, Bertrand Russell e G. E. Moore. Chegou mesmo a convencer Moore a viajar até à Noruega – uma árdua viagem de comboio e barco, naqueles dias – e a ficar duas semanas. O objetivo da visita de Moore era discutir as novas ideias de Wittgenstein sobre lógica. Na verdade, a “discussão” significou que Wittgenstein (que tecnicamente era ainda um aluno de graduação) falou e que Moore (que era bem mais eminente nessa época) ouviu e tirou notas.

Contudo, a presença de Moore foi de algum modo necessária para o nascimento dessas ideias: Wittgenstein precisava de uma audiência e de um ouvinte inteligente capaz de criticar e de o ajudar a focar o seu pensamento, mesmo que essas críticas não fossem negligenciadas. E não foi o único a precisar de uma audiência. Boécio, na sua cela, imaginou a sua visita: a Filosofia, personificada por uma mulher alta, usando um vestido com todas letras de Pi a Teta desenhadas. Ela repreendeu-o por ter abandonado o estoicismo que ela pregava. O livro de Boécio foi uma resposta àquele desafio.

Já Maquiavel foi de facto exilado, arrancado das intrigas da vida da corte – um citadino forçado a uma existência bucólica contra a sua vontade. Mas, numa carta ao seu amigo Francesco Vettori, a 10 de dezembro de 1513, ele descreveu como passava as suas tardes: retirava-se aos seus estudos e evocava grandes pensadores antigos, com quem mantinha conversas imaginárias sobre a melhor forma de governar. Essas conversas imaginárias foram o material bruto de O Príncipe. Quanto a Descartes, poderá ter-se retirado para escrever e poderá ter evitado distrações ao realizar a maior parte de seu trabalho na cama, mas na altura da publicação das suas Meditações estas surgiram com inúmeros comentários críticos de outros filósofos, incluindo Thomas Hobbes, juntamente com respostas suas às críticas. Da mesma maneira, Rousseau amava a solidão, mas incluiu diálogos nos seus escritos e até escreveu o bizarro livro Rousseau, juiz de Jean-Jacques (1776), no qual apresenta duas versões de si próprio, debatendo uma com a outra.

A filosofia ocidental tem as suas origens na conversação, na discussão cara-a-cara sobre a realidade, o nosso lugar no cosmos e sobre como devemos viver. Começou com um sentimento de mistério, espanto e confusão e com o poderoso desejo de alcançar além das meras aparências para descobrir a verdade ou, se não isso, pelo menos algum tipo de sabedoria ou equilíbrio.

Foi Sócrates quem inaugurou a discussão sobre o diálogo filosófico. Esse homem pobre e excêntrico que vagueava pelo mercado em Atenas no século V a. C., abordando os transeuntes e questionando-os com o seu célebre estilo, estabeleceu o padrão para o ensino e a discussão filosófica. O seu pupilo Platão esculpiu eloquentes diálogos socráticos que, supomos nós, capturam algo de como seria o arengar e a instigação do seu mestre, embora talvez sejam mais o resultado de um ato de ventríloquo. O próprio Sócrates, se acreditarmos no diálogo de Platão, Fedro, não tinha grande respeito pela palavra escrita. Argumentava que ela era inferior à falada. Uma página escrita pode parecer inteligente, mas a qualquer questão que se lhe dirija responderá do mesmo modo todas as vezes que for lida – tal como acontecerá com esta frase, não importa quantas vezes se volte a ela.

Além disso, porque haveria um pensador de lançar sementes em solo estéril? Certamente que é preferível semear onde é mais provável que elas cresçam, partilhar as ideias do modo mais adequado à audiência, adaptar o que se diz a quem está perante nós. Wittgenstein fez uma anotação no mesmo sentido quando escreveu: “Dizer a uma pessoa algo que ela não entenderá não faz sentido, mesmo que você acrescente que ela não vai entender”. As inflexões do discurso permitiram a Sócrates exercer a sua famosa ironia, dar ênfase, provocar, persuadir e jogar, e tudo isto é suscetível de ser mal interpretado na página escrita. Um filósofo pode escrever algumas notas como lembrete de pensamentos ocasionais, sugeriu Sócrates, mas na comunicação filosófica o diálogo é que é rei.

O uso dos diálogos por Platão refletiu a centralidade da discussão na filosofia. Infelizmente, com as exceções de David Hume nos seus Diálogos a respeito da religião natural (1779) e de Søren Kierkegaard em Ou isso ou aquilo: um fragmento de vida (1843), onde recorre a personagens que apresentam pontos de vista alternativos, poucos filósofos têm lidado bem com múltiplas vozes. Alguns propõem-se representar o advogado do diabo contra as suas próprias ideias, mas, como reconheceu John Stuart Mill, críticos imaginários podem ser bem menos enérgicos e apresentar argumentos mais fracos do que os reais.

Mesmo atualmente, o método socrático de pergunta e resposta continua a ser a melhor forma de ensinar filosofia. É verdade que as exigências de aulas com grande audiência tornam difícil a interação, mas, como mostrou o professor de Harvard, Michael Sandel, nas suas conferências Justiça, qual a coisa certa a fazer? e nas suas discussões sobre o bem público, mesmo aqui a conversação e o diálogo são possíveis. Isto representa uma melhoria a vários níveis relativamente ao estilo de ensino de Wittgenstein, que, de acordo com testemunhos seus contemporâneos, envolvia os alunos pela luta que este génio atormentado travava com as suas próprias ideias em desenvolvimento, pelas pausas de minutos em que ficava a olhar a sua mão, ou pelas vezes em que amaldiçoava a sua própria estupidez: “Que idiota que eu sou!”. Sem dúvida cativante e em muitos aspetos superior a um monólogo ensaiado, este ensino, que foi infligido ad nauseam aos alunos, é contudo desprovido da vivacidade e acutilância dos diálogos socráticos.

As novas tecnologias estão a mudar a paisagem em que as discussões filosóficas – e indiscutivelmente todas as discussões – têm lugar. Têm permitido a filósofos contemporâneos atingir audiências globais com as suas ideias e levar a filosofia além das salas de aula. Porém, há mais nesta “filosofia falada” do que simplesmente as palavras que são proferidas e as ideias que são discutidas. Aspetos audíveis e não-verbais da interação, tais como ouvir o sorriso na voz de alguém, um momento de impaciência, uma pausa (ou dúvida, talvez?) ou um insight – esses fatores humanizam a filosofia. Tornam impossível pensá-la como uma simples aplicação mecânica de lógica rigorosa e revelam algo não só sobre a posição assumida como também sobre o pensador. O entusiasmo expresso pela voz pode ser contagiante e inspirador.

Hobbes respondeu por escrito às Meditações de Descartes, porém imagine-se quão mais fascinante teria sido ouvir e vivenciar os dois pensadores num diálogo público gravado. De igual modo, se pudéssemos ouvir uma gravação de Wittgenstein discutindo o seu “Tractatus” com Frank Ramsey, um dos seus primeiros leitores mais perspicazes, tal poderia muito bem transformar os nossos pontos de vista sobre ambos os pensadores. O equivalente a essas conversas imaginárias está a ser gravado neste momento, dentro e fora das universidades. Estão disponíveis de forma livre na internet – no YouTube, no iTunes e noutros lugares mais, caso se saiba onde procurar.

Sem discussão e desafio, a filosofia rapidamente se torna no dogma morto que Mill temia. Mas isso não significa que cada ponto de vista seja igualmente válido ou que devamos aceitar que cada pessoa encontre a sua própria verdade. Todos os grandes filósofos foram movidos pela tentativa de ir além das aparências e dizer algo importante sobre como as coisas realmente são. A atividade filosófica põe posições na balança, não se limita a divulgá-las. Discussão sem julgamento crítico torna-se mera tagarelice e veiculação de opiniões diferentes – como William Empson escreveu em seu poema “Let It Go” (1949):

                                The contradictions cover such a range.
The talk would talk and go so far aslant.
You don't want madhouse and the whole thing there.
                      

Foi, contudo, John Stuart Mill quem cristalizou a importância de desafiar as nossas ideias através do compromisso com outros que discordam de nós. No segundo capítulo de Sobre a Liberdade (1859), argumenta a favor do imenso valor das vozes dissonantes. São as discordâncias que nos forçam a pensar, que desafiam a opinião recebida, que nos empurram para longe do dogma morto em direção às crenças que sobrevivem ao desafio crítico, da melhor maneira que podemos esperar. Aqueles que discordam de nós têm um grande valor mesmo quando as suas crenças são em grande parte ou totalmente erradas. Como Mill afirmou: “Quer professores quer estudantes adormecem nos seus postos assim que deixa de haver inimigo à vista.”

Sempre que a educação filosófica cai no ensino de factos sobre história e sobre textos, em que as posições do professor são regurgitadas ou em que se aprende a partir de um compêndio, afasta-se das suas raízes socráticas de discussão. E torna-se tão prejudicial para a filosofia quanto para os estudantes, aqueles que estão no extremo do que o educador radical Paulo Freire, na sua Pedagogia do Oprimido (1970), chamou pejorativamente de “banco” do conhecimento. O objetivo da filosofia não é ter à sua disposição uma porção de factos, embora tal seja útil, nem tornar-se numa Wikipédia portátil ou base de dados ambulante: ao invés disso, ela serve para desenvolver capacidades e sensibilidade que nos torne capazes de argumentar sobre algumas das questões mais significativas que podemos colocar a nós próprios, questões sobre realidade e aparência, vida e morte, deus e sociedade. Como o Sócrates de Platão nos diz: “Não estamos a discutir aqui questões triviais, estamos a dicutir como viver.”


Texto original

WARBUTON, Nigel. Talk with me. Aeon Magazine, disponível aqui

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