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Entrevista a Ricardo Santos sobre o livro O Nomear e a Necessidade de Kripke
Inserido em 2013-03-07  |  Adicionar Comentário

Ricardo Santos é presidente da Sociedade Portuguesa de Filosofia, professor de Filosofia na Universidade de Évora e traduziu recentemente um dos maiores livros de filosofia discutidos nos últimos anos, O Nomear e a Necessidade, de Saul Kripke.

Este livro reúne três palestras que Kripke proferiu em 1970 na Universidade de Princeton quando tinha apenas 29 anos, apresentando ideias que são bastante claras, mas igualmente desafiadoras e influentes.

Para ajudar a introduzir os professores e os alunos de filosofia nalgumas ideias de Kripke, conversamos com Ricardo Santos.
                                                                    
               

 

Domingos Faria – Que problemas filosóficos Saul Kripke trata no livro O Nomear e a Necessidade e que resposta dá a esses problemas?

Ricardo Santos
– Em O Nomear e a Necessidade, Kripke aborda diversos problemas. Um deles é um problema de lógica filosófica a respeito do estatuto modal da identidade. A identidade é aqui entendida como a relação que cada coisa tem com ela mesma e somente com ela mesma. Por exemplo, é a relação a que Álvaro Cunhal se referiu quando, nos seus últimos anos, anunciou «Manuel Tiago sou eu». Mais trivialmente, é também a relação que há entre o número 2 e o número 1 + 1. Talvez mais interessantemente, parece ter sido a relação que Narciso tinha com as pessoas de quem gostava (fazendo fé na lenda de que ele só gostava dele próprio).
O problema consiste em saber se esta relação é sempre necessária ou se, nalguns casos, é uma relação contingente. Haverá casos em que, apesar de x e y serem a mesma entidade, seria no entanto possível que fossem entidades distintas, ou que uma existisse sem a outra? Kripke responde que não. Na sua perspetiva, todas as identidades são necessárias. Para defender isto, ele tem de defrontar-se com os alegados exemplos de identidades contingentes que lhe apresentam e conseguir mostrar que se trata sempre de identidades ilusoriamente contingentes, mas realmente necessárias. Fá-lo a respeito de exemplos famosos como «a estrela da manhã e a estrela da tarde são a mesma», «9 é o número de planetas do sistema solar», «Cícero é Túlio», «Benjamin Franklin é o inventor das lentes bifocais», «a água é H2O», «o ouro é o elemento químico com o número atómico 79», «o calor é o movimento das moléculas», etc. E um dos exemplos que discute diz respeito a outro problema filosófico importante, abordado no livro, que é o problema da relação entre a mente e o corpo. Kripke opõe-se à chamada «teoria identitativa da mente», que foi proposta nos anos cinquenta do século XX por alguns filósofos que consideravam que, num ser humano, a mente e o cérebro são exatamente a mesma coisa. Estes autores pensavam que os estados mentais de uma pessoa não são mais nada do que estados físicos do seu cérebro, e que o avanço da investigação nas neurociências iria confirmar isto a respeito de coisas como a dor, o medo, os sonhos, etc. Mas eles também julgavam que as correspondências entre acontecimentos mentais e acontecimentos cerebrais descobertas pela ciência seriam sempre contingentes, pois, se os seres humanos tivessem uma constituição diferente, os mesmos acontecimentos cerebrais poderiam resultar em vivências mentais diferentes daquelas em que efetivamente resultam, ou até poderiam ocorrer sem que houvesse qualquer experiência mental. Kripke propõe uma refutação desta teoria, com base na sua tese de que a identidade é sempre necessária. O ponto central dessa refutação é a confirmação – e a sua defesa contra possíveis objeções – daquilo que os próprios filósofos visados concedem, a saber, que as correlações entre acontecimentos cerebrais e mentais são contingentes. Uma vez estabelecida esta contingência, conclui-se facilmente que tais correspondências não são relações de identidade. Para o problema filosófico principal, da relação entre a mente e o corpo, Kripke não avança nenhuma resposta. Diz que é um problema «gerador de extrema perplexidade», que se encontra «completamente em aberto».
O Nomear e a Necessidade é um livro muito rico. Há ainda outros problemas que são aí abordados, nas áreas da epistemologia, da filosofia da ciência, da metafísica, da filosofia da lógica e da filosofia da linguagem. No âmbito desta última, é muito importante a discussão do problema do significado dos nomes próprios (onde se encontra uma crítica muitíssimo forte e influente à teoria descritivista dos nomes de Frege e Russell, e um esboço de uma «teoria causal da referência»). Mas julgo que os dois exemplos que dei são suficientemente ilustrativos.


Domingos Faria
 
– Como reagiu a comunidade filosófica às teses defendidas por Kripke? Aceitaram-nas comummente ou houve alguma tese que foi mais insistentemente refutada?

Ricardo Santos
– A reação às palestras de Princeton foi muito grande, um pouco por todo o mundo (até porque, logo em 1973, Kripke deu em Oxford um outro ciclo de palestras importantes, as «John Locke Lectures»). A melhor homenagem que se pode fazer a uma tese e a um argumento filosófico talvez não seja aceitá-los, mas sim discuti-los. E foi sobretudo isso que aconteceu com Kripke. Nos anos que se seguiram, o número de filósofos e de publicações que discutiram as suas ideias e lhe exploraram as consequências não parou de crescer. Até hoje, aliás. Ainda assim, há uma ideia em particular que foi aceite por quase toda a gente (mas não toda, é claro – como é típico na filosofia): trata-se da sua crítica à teoria descritivista dos nomes, quer dizer, à ideia de que o significado dos nomes próprios da linguagem natural é dado por descrições definidas (uma só ou um agregado delas) que os falantes lhes associam. Essa foi a teoria ortodoxa, geralmente aceite desde o início do século XX (desde Frege e Russell) até Kripke. A maioria dos filósofos considerou que os argumentos de Kripke refutaram conclusivamente a teoria descritivista. As teses de Kripke que suscitaram controvérsia foram muitas. Na própria filosofia da linguagem, é importante observar que o abandono do descritivismo reabriu diversos problemas que antes se consideravam resolvidos, como por exemplo o problema dos nomes vazios (sem referente), das negações de existência e do papel dos nomes nas atribuições de atitudes proposicionais.


Domingos Faria
– Por que razão considera que este livro “tem lugar reservado entre as principais obras da filosofia do século XX”?

Ricardo Santos
– Essa minha opinião não tem nada de original. É o que pensa a generalidade dos filósofos, hoje. Porquê? Sobretudo por causa do valor intrínseco das ideias nele apresentadas. Kripke fez-nos compreender uma série de coisas que antes não compreendíamos. Quer um exemplo? Kripke fez-nos compreender que o conhecimento a posteriori, ou empírico, pode ser conhecimento de verdades necessárias. Outro exemplo: fez-nos compreender que, quando falamos de situações contrafactuais, os nomes próprios e as descrições definidas funcionam de maneira muito diferente. Os nomes são designadores rígidos, quer dizer, designam a mesma coisa em todos os mundos possíveis. Há toda uma série de desenvolvimentos na filosofia contemporânea que não se podem compreender sem conhecer o contributo de Kripke.


Domingos Faria
– Os professores de Filosofia do ensino secundário podem ensinar algum conteúdo filosófico presente no livro O Nomear e a Necessidade? Se sim, em que parte do programa de Filosofia se poderiam enquadrar tais conteúdos e que sugestões daria aos professores para lecionar as ideias de Kripke?

Ricardo Santos
– Talvez no 11.º ano. Na parte da lógica, não, porque infelizmente não se dá nenhuma noção de lógica modal. Acho que nem se costuma dar a informação de que a lógica modal foi uma criação de Aristóteles. Em todo o caso, parece-me importante que se esclareçam as relações entre os conceitos de possibilidade, necessidade e contingência. Caso contrário, será difícil entender coisas como o cogito cartesiano ou o argumento ontológico, entre muitas outras. Mas, nos capítulos da epistemologia (ou teoria do conhecimento) e da filosofia da ciência, pode ser pertinente falar de Kripke. Acima de tudo, eu diria que seria importante que os professores conhecessem o essencial das ideias de Kripke, mesmo que não tenham de ensiná-las diretamente. Idealmente, deveriam ter tomado conhecimento delas na licenciatura. Mas nunca é demasiado tarde para suprir falhas que tenhamos na nossa formação. Um professor deve sempre saber mais do que aquilo que tem de ensinar, para que possa sentir-se à vontade e ter agilidade na discussão dos problemas. É por isso importante que os professores saibam que, a respeito do a priori, do analítico e do necessário, houve avanços significativos depois de Kant. E que Kripke separou bem o plano epistemológico do plano metafísico e propôs exemplos de verdades necessárias a posteriori, bem como de verdades contingentes a priori. Assim como, na filosofia da ciência, é importante que tenham a ideia de que Kripke propôs uma nova maneira de encarar o conhecimento científico (em contraste com o instrumentalismo e outras formas de antirrealismo muito difundidas), segundo a qual também faz parte da tarefa da ciência descobrir a própria essência das coisas. Cada professor saberá depois, nas suas aulas, encontrar a melhor maneira de mobilizar estes conteúdos, se vir que eles podem ser relevantes para a discussão.


Domingos Faria

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